domingo, 11 de julho de 2010

As transformações da experiência docente, saber escolar e saber docente

O texto a seguir foi preparado em maio como um pequeno trabalho para o curso de especialização em Ensino de História do CESPEB, criado por um grupo de professores da Faculdade de Educação da UFRJ. Por esse motivo é que se refere diretamente aos professores de História e não aos outros professores e funcionários, também fundamentais para o sistema educacional, é óbvio.


“Os professores de História não são apenas necessários,

são fundamentais”[1]


Em dois meses de curso, posso notar algumas transformações importantes e positivas em minha relação com a docência. Muitas reflexões iniciadas anteriormente aprofundam-se, outras são provocadas a partir das aulas, debates e leituras. Iniciava minha Carta-Justificativa apresentando-me, Professor da Rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro, formado em julho de 2008 e lecionando a partir de agosto de 2008. Desde então, a prática docente tem sido uma fonte incrível de acúmulo de experiências diversas, sobre as quais o curso cria um espaço de reflexão. Sobre este aspecto – minha experiência durante esse período, um ano e nove meses – gostaria de fazer alguns comentários.

Lembro do momento de transição abrupta da posição de aluno para professor. Além do estranhamento de assumir quatro turmas pela primeira vez (acompanhado de uma nítida sensação de não estar tão preparado para a docência) e começar a autoconstrução como professor, este sentimento relacionava-se a quase todos os componentes da nova realidade vivida. Fiquei intensamente impressionado com a situação real da educação pública destinada à classe trabalhadora – é evidente, um estudante universitário que se prepara para ser professor e tem origem na classe média ouve, vê e lê sobre a precariedade das condições da educação pública, mas nada se compara a viver dentro desta realidade. Estudei no Colégio Pedro II, uma escola pública, mas de caráter bastante diferenciado em relação às redes públicas estadual e municipal do Rio de Janeiro, o que não me permitia ter contato direto com esta realidade que encontrei em 2008[2].

Além das condições estruturais precárias, encontrei uma realidade em que aqueles que dão vida e sentido ao espaço da escola – alunos, professores e funcionários – estão desmotivados e desanimados, em sua maioria bastante distantes de qualquer perspectiva que compreenda a atuação na escola como produtora de conhecimento e modos de ser no mundo. A primeira reação (que, hoje, considero natural) de um professor recém-formado e pleno de vontade de conhecer a fundo o mundo da docência para aperfeiçoar-se nele é criar uma certa rejeição a esse posicionamento, especialmente em relação aos profissionais de Educação. No entanto, passados quase dois anos, compreendo o sentido dessa acomodação, apesar de lutar diariamente para que se torne consenso a noção de que essa acomodação resignada quanto à educação pública é, também, co-responsável pelos imensos problemas vividos no cotidiano escolar e na vida profissional dos professores.

Conhecer de perto a realidade dura da vida de boa parte dos alunos da Rede Municipal – especificamente dos alunos da escola em que leciono, E.M. Jardim Guararapes, localizada em Inhoaíba, e da E.M. Silvia de Araújo Toledo (em que lecionei em 2008 e 2009), em Paciência (Cezarão) – também foi transformador. Os impactos diversos da pobreza material, a violência intensa vivida nestas comunidades, os problemas familiares dos jovens e todas as conseqüências que trazem estes problemas para sua vida estudantil (profundo desânimo e desinteresse), para a escola e a sala de aula.

Hoje sei melhor qual deve ser minha posição dentro da escola e como devo nortear minha relação com os demais professores, funcionários da escola e com os alunos. Assumo a Educação como compromisso, e sei que não estamos sozinhos, são muitos os que batalham pela qualidade da educação pública. Neste sentido é que me posiciono, atualmente, no debate sobre as fases da carreira do professor[3]. Depois de um período inicial em que predominava o estranhamento, hoje reafirmo a certeza de seguir o caminho da docência pela vida.

Seguindo a ordem de exposição na Carta-Justificativa, apresentava nela minha perspectiva sobre a formação continuada. O que dizia não era muito profundo, pois não havia acumulado muitas reflexões sobre o tema. Mais importante era o que não foi escrito, mas foi apresentado na entrevista. Compreendia esta etapa da formação, o curso de Ensino de História do CESPEB, como a etapa em que de fato tornaria mais complexa minha concepção sobre a docência, sem valorizar tanto a experiência prática e teórica acumulada nos meses de magistério (e, ainda, atribuindo à formação inicial uma responsabilidade maior do que a devida pelos problemas enfrentados diante do início na prática docente).

Neste aspecto, o curso efetivamente apresentou-me uma nova perspectiva teórica sobre a experiência prática do professor e sua relação com o conhecimento científico com o qual tem contato direto em sua formação inicial universitária. Os conceitos de saber escolar e saber docente representam de forma mais elaborada essa perspectiva. O saber escolar, segundo Ana Maria Monteiro,

designa o conhecimento relacionado com o ‘saber científico’ que está sendo ensinado, porém distinto deste último. Ele é criado a partir das necessidades e injunções do processo educativo e, como tal, abrange questões que surgem no ato do ensino, envolve conhecimento científico e saber cotidiano, além dos aspectos socioculturais relativos a cada situação. O conceito contesta assim as concepções que, considerando apenas o conhecimento científico, desqualificam o trabalho dos professores e a educação escolar em geral.[4]

Portanto, valoriza-se a escola como espaço de produção de conhecimento, e não apenas como espaço de recepção dos conhecimentos produzidos pelos pesquisadores universitários. Quebra, em alguma medida, a relação unilateral e hierárquica afirmada por muitos que entendem a relação entre universidade e escola como uma relação entre conhecimento científico produzido na academia e seu espaço de divulgação, a escola.

Especificamente quanto ao conhecimento produzido pelos professores no ensino de sua disciplina científica, apresenta-se o conceito de saber docente:

o conceito de saber docente joga luz sobre o ato de ensinar, principalmente quanto aos saberes práticos considerados fundamentais para a atuação profissional. Como as situações de ensino e aprendizagem se renovam continuamente, o simples domínio dos conteúdos a serem ensinados não é suficiente. É necessário articular o conhecimento da matéria em questão com o conhecimento pedagógico, de modo a se estabelecer adequadamente e com certa autonomia, o que e como ensinar.[5]

O conceito de saber docente, deste modo, valoriza a relação dialética – vivida na prática cotidiana do professor – por meio da qual este precisa sempre criar um novo conhecimento a partir do conhecimento científico de sua disciplina e as necessidades apresentadas pelas diversas situações de ensino que devemos enfrentar. Por fim,

O emprego desses conceitos amplia imensamente o conhecimento do processo pedagógico, mostrando como os professores acumulam e combinam diferentes saberes disciplinares, além de sua própria experiência, de acordo com as necessidades de cada caso. Tais conceitos revelam a complexidade, insuspeitada por muitos, do processo educacional, inclusive por implicar escolhas metodológicas e teóricas; seleção de conteúdos, organização de textos, modo de explicar e ensinar os conceitos, de lidar com a noção de tempo, escolha de exemplos, de fontes documentais, de materiais didáticos, além das questões relativas ao desempenho em sala de aula: limitam-se a seguir propostas contidas nos livros didáticos? Adotam a ‘aula magistral’?[6]

Enfim: os conceitos de saber escolar e saber docente provocam reflexões importantes para a compreensão da profissão docente, assim como constituem um chão firme de valorização da produção de conhecimento da escola e do professor, a partir da qual, conscientemente ou não, os professores constroem seus caminhos. Em meio ao aparente caos econômico, cultural e político que vive nossa sociedade, reafirmo as palavras citadas na epígrafe: “os professores de História não são apenas necessários, são fundamentais”.


Referências bibliográficas

HUBERMAN, Michael, “O ciclo de vida profissional dos professores” in NÓVOA, Antonio (org.), Vida de professores, 2ª Ed., Porto: Porto Editora, 1995, p. 31-62.

MONTEIRO, Ana Maria, “Os professores de história ainda são necessários?” in Revista Nossa História, Ano I, Número 5, Março de 2004, pp. 85-87.



[1] MONTEIRO, Ana Maria, “Os professores de história ainda são necessários?” in Revista Nossa História, Ano I, Número 5, Março de 2004, p. 87.

[2] A discussão sobre o caráter do Colégio Pedro II e outras escolas públicas – em geral, federais – que atendem predominantemente a alunos de classe média é importante para a compreensão do projeto educacional do Estado e sua relação com as classes sociais, mas este não é o objetivo do atual trabalho.

[3] Este debate sobre o “estágio” do professor em sua carreira encontra-se em HUBERMAN, Michael, “O ciclo de vida profissional dos professores” in NÓVOA, Antonio (org.), Vida de professores, 2ª Ed., Porto: Porto Editora, 1995, p. 31-62.

[4] MONTEIRO, idem, p. 86.

[5] MONTEIRO, idem, p. 87.

[6] Idem, Ibidem.